Sidilene Antônia Mudesto

Mulher negra de 43 anos, que trabalha como nutricionista na periferia de São Paulo – Capão Redondo – há 12 anos.

Precisamos falar sobre racismo e o quanto ele é prejudicial para nossa sociedade. Neste artigo eu converso com Sidilene Atônia Mudesto, uma mulher negra de 43 anos, que trabalha como nutricionista na periferia de São Paulo – Capão Redondo – há 12 anos. Uma das situações motivadoras desse bate-papo foi a morte do norte americano George Floyd. Este homem negro foi assassinado friamente por um policial branco que ficou com seu joelho em cima do pescoço de Floyd por 8 minutos e 46 segundos enquanto aquele suplicava por sua vida 11 vezes clamando que não conseguia respirar. Nesta entrevista vamos dar voz ao lugar de fala de Sidilene. Através de suas experiências de vida refletiremos sobre como nos dias atuais se tornou ainda mais necessário discutirmos sobre racismo

Pra você racismo existe?

Existe e em alguns momentos ele é velado, estruturado, mas ele existe. É que a gente pensa que foi uma brincadeira… A gente aprendeu a lidar com isso. Eu acho que a força que a gente tem dentro é tão grande que às vezes recebemos uma agressividade e você pensa “será que foi mesmo? Será que ele quis dizer isso?”, como que conota isso para a gente? Mas ele existe sim.

E a partir desta vivência, qual seria a definição de racismo para a Sidilene?

Racismo para mim é falta de amor. É falta de amor porque quando a característica, não só a cor, sobressai ao que eu sou como pessoa isto é para mim totalmente falta de amor. Eu acho que a pessoa não tem respeito e amor por ninguém quando ela pratica racismo.

O dicionário define racismo como: 

  1. Conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias.
  2. Doutrina sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras.
  3. Preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, geralmente considerada inferior.
  4. Por analogia, atitude de hostilidade em relação a determinada categoria de pessoas.

Percebemos que o racismo tem um pressuposto no qual existe uma raça, um determinado grupo de pessoas que possui superioridade e está acima, no sentido de valor, de um outro. 

O racismo já trouxe muitos problemas na história humana e muitas guerras já foram travadas por isto. Em todos os continentes vemos relatos de massacres de povos e não existe um país que não tenha sofrido com o racismo ou que não tenha seu solo manchado pelo sangue de escravos. 

Você percebe algum lugar no qual o racismo seja pior? Um ambiente, um país ou mesmo uma região do Brasil?

No Brasil a gente vê muita desigualdade. Eu trabalho na periferia. Se vemos um negro dirigindo um ‘carrão’ alguém olha, a polícia para. Geralmente quando a polícia para fazer algumas vistorias, alguma ‘batida’, é geralmente um negro que eles estão lá, apalpando e fazendo isto de um jeito agressivo… Se você vai em certos shoppings da cidade você não vê um negro trabalhando, é muito raro. Então eu acredito que tem sim alguns lugares em que o racismo é pior. E em contrapartida há alguns lugares também que quando eles veem um negro, acham bonito, eles olham com olhares de encantamento.

Você já sofreu racismo?

Eu já. Eu fui para a Bahia, fiquei alguns dias lá e voltei ‘mais’ negra, mais preta do que eu sou, e fiz “marquinha” de biquini. E certa pessoa na empresa em que eu trabalhava falou “nossa, você̂ queima?”, então eu disse “sim”. E ela continuou: “e quando você̂ queima, arde?”, então eu falei: “deixa eu te falar uma coisa, quando eu me sento no vaso, saí número dois, quando eu corto sai sangue…”. Eu não consegui falar mais nada para esta pessoa. Isso aconteceu há uns 10 anos e está gravado até hoje. O que mais me chocou é que, esta mulher que falou isto, é filha de negra. Pela minha trajetória eu acredito que o racismo é ensinado. Eu passei por isto e consigo lidar bem com isso. Se isto vier de novo eu acredito que consiga lidar novamente. O que é mais gostoso é você ter maturidade de não ser tão agressiva. Porque a agressividade faz isto com a gente, ela faz a gente devolver de repente de um jeito ruim. E vale a pena discutir certas coisas com sabedoria, com equilíbrio, com recursos de fala.

Pela minha trajetória eu acredito que o racismo é ensinado.

Esse racismo já aconteceu no seu ambiente de trabalho?

A gente percebe olhares diferentes. A gente trabalha em uma unidade de saúde, então quando me veem sem jaleco ou sem crachá, pensam que eu possa ser uma mocinha da limpeza. E quando você se apresenta como nutricionista, ou como médica ou como fisioterapeuta as pessoas te olham torto. Você percebe um olhar, de em cima até embaixo, até chegar no seu rosto. O quanto que isto é ruim, deprimente. Às vezes você fala como que ainda pode no mundo existir isso?

George Floyde

Faz poucos dias – 25 de maio de 2020 – assistimos chocados, pelo menos os que ainda possuem um traço de humanidade, a morte de George Floyde homem negro, de 46 anos, morto por asfixia mecânica sob o joelho de um policial branco enquanto clamava dizendo: “I can’t breathe” traduzindo: “eu não consigo respirar…”. 

Sidilene, você viu o vídeo da morte de George Floyd

Vi. Eu confesso que quando vi o vídeo, no dia 25 de maio, a gente já estava sofrendo muito em São Paulo, com as questões da pandemia do Covid-19, estávamos todos muito fragilizados. Mas esta reportagem me chocou muito porque o policial estava em cima dele. E no primeiro momento eu pensei “não quero ver isso porque é muito chocante, muito sofrimento”, e não assisti. Mas depois eu assisti o vídeo e realmente é triste demais, a técnica que ele aplicou é a técnica do estrangulamento. Ele pediu 11 vezes para ele parar, que ele não estava conseguindo respirar e não houve nenhum movimento de respeito contra aquela vida. Independente da cor que estava ali, era um ser humano.

Que sentimentos você tem ao ler esta notícia?

Tristeza. Raiva. Angústia. Dó. Impotência. Sentimentos de dor mesmo. De não conseguir fazer nada. E foi-se uma vida. Foi-se várias outras vidas. Quantas vidas realmente já se foram com atitudes grosseiras como essas? Então isto realmente foi de querer chorar, de fica com um ‘nó’ na garganta. Quando você retorna à este vídeo é forte demais. Eu lembro que virei logo, que sai da página para não querer ver mesmo, porque é uma coisa que machuca. 

Esse acontecido provocou uma onde de protestos pelo mundo. Você acha isso uma forma válida de lutar contra o racismo?

Eu acho. Foram depredados muitos patrimônios, foram invadidas algumas lojas e teve alguns feridos. E tem gente que fala assim: “nossa, mas é muito barulho…”. Eu acho que a gente não pode parar de gritar. Se a gente está falando baixo e as pessoas não estão ouvindo, a gente precisa continuar gritando até que alguém escute. Não sou a favor de agredir, derrubar, destruir. Mas repare a agressividade que é o racismo. Olha o sofrimento que causa em um monte de outras pessoas, inclusive naquelas pessoas que estão lá, tentando defender. Eu acho que tem que continuar gritando sim.

Em um desse muitos protestos manifestantes queimaram a delegacia de Minneapolis na qual trabalhavam os policiais assassinos – sem ninguém dentro do prédio.  Pra você isso é um exagero ou uma reação esperada pelo nível de violência que os negros vêm sofrendo?

Delegacia de Minneapolis – fonte divulgação.

Foi uma reação esperada. A violência ao patrimônio é uma coisa muito ruim. Mas o racismo também é agressivo. É uma violência forte. Então, esses tipos de coisas precisam acontecer. Na realidade eu acho que as pessoas estavam tentando mostrar de forma pacífica as suas inquietações, o que não estavam gostando. Infelizmente aconteceu a queima dos patrimônios, de locais que estavam vazios. Mas eu sinto que o racismo é maior e mais violento que a própria queima dos patrimônios.

Trazendo para nossa conversa uma citação de Angela Davis, uma mulher negra, pensadora, sociológica e filosofa. Ela diz assim:

quando a vida das mulheres negras realmente tiver importância o mundo será transformado.

Você Sidilene, mulher negra, você se acha mais vulnerável ao preconceito racial?

Eu me acho. E é por isso que a voz da mulher negra precisa começar a aparecer, é necessário valoriza está voz mais um pouco. Porque a gente aprendeu a ser um pouco mais agressiva para dar conta de tudo isso.

Uma mulher negra é conhecida por saber dançar, se uma mulher negra não sabe dançar, as pessoas falam: “como não sabe dançar?” Tem que ter o samba no pé. Tem que ter “corpo violão”. Eles olham para a gente e pensam “globeleza” ou a empregada doméstica. E isso precisa mudar. Existem mulheres negras que não tem o samba no pé e existem mulheres negras que tem outros conteúdos.

É um desafio você explicar que o osso da negra pesa mais que o osso da branca, as mulheres negras se assustam. Até elas entenderem que uma negra é linda da maneira que ela é independente do tamanho dela é um processo demorado que busco no atendimento como nutricionista. É algo que tenho que desconstruir o tempo todo no consultório.

Acho que a mulher negra precisa entender o espaço em que ela ocupa. Eu por exemplo tenho três irmãs. A minha irmã caçula é casada com um rapaz branco e ela tem dois filhos de pele clara. Ela mora em um condomínio na zona sul de São Paulo. Certo dia ela estava tomando sol no parquinho com as crianças e perguntaram se ela era babá das próprias filhas… Ela disse que eram os filhos dela, mas esta senhora, que fez esta pergunta horrível, foi insistiu no questionamento se ela era babá das crianças. Então minha irmã disse assim: “então, se a senhora insistir com essa história e vou na delegacia com a senhora. O que te incomoda? Eu ser negra e ter dois filhos lindos ou eu ser negra e morar no mesmo condomínio que a senhora?” É importante para a mulher negra entender a importância do local que ela ocupa.

Você sente falta de, na sua infância, a ausência de símbolos de mulheres negras nas mídias?

Na minha infância, a minha mãe conseguiu ser esse símbolo muito bem. Nós somos três mulheres, somos fortes. Na minha família, temos índios, italianos e negros, e por termos traços mais afinados, pelo cabelo não ser tão crespo, eu ouço: “até parece que você não é negra”. As pessoas falam isto para mim. A minha mãe trabalhou isto muito bem na gente: “você é importante do jeito que é…”. Ela dizia: “você precisa estudar, você precisa buscar o melhor para você e as pessoas precisam respeitar você como ser humano. 

Quando você fizer qualquer trabalho, você precisa fazer o melhor que você pode, independente se é limpando uma casa, limpando um chão, fazendo uma comida, ou atendendo um paciente”. Eu sinto falta de ter referência externa, mas eu tive referência dentro daminha casa que foi a minha mãe. Então para a gente isso foi muito forte, foi muito embasado em casa. A gentefoi para colégio interno e a gente conseguimos nos sair muito bem. 

Meus amigos me chamam de ‘nega’, ‘neguinha’ e é ótimo. Adoro receber este carinho. Quando me chamam de ‘minha nega’ eu respondo ‘oi, tudo bem?’ e o quanto é gostoso escutar ‘nega (negra)’, eu gosto muito e gosto que me chamem de ‘nega’ mesmo. Mas para isto, minha criação fez diferença. E eu sintoque eu preciso ser uma tia forte porque os meus sobrinhos estão crescendo. E quem sabe o racismo não vá mudar? A gente precisa ter esperança. 

O quanto que empoderar a minha sobrinha é importante. Ela tem o cabelo crespo, que é lindo e maravilhoso, e que a cor da pele faz parte, que a estrutura dela é linda e que ela é uma princesa e ela é linda. Ela tinha dois anos quando eu falava para ela: ‘você é negra sim. O seu cabelo é crespo sim. Mas você élinda. E eu já vou te falar isso porque quando alguém falar o oposto, você vai devolver que é meu cabelo é crespo sim e é lindo. E eu faço questão de repetir isso para eles, todos eles, todos os dias para que isto seja fortalecido. Ser negro não importa e não deveria mudar nada. Os meus amigos não me tratam diferente porque eu sou negra. 

Não precisamos, obviamente, sermos negro para lutar contra o racismo, embora o negro tenha um lugar de fala muito maior, muito importante e muito bom para poder discutir este assunto. Quanto que a segregação racial é prejudicial à sociedade e, pior: o quanto que o sexismo é pior. Ele piora mais a situação. Imagina esta separação que é feita, você negro, que tem um pele que chama atenção onde você vai, e você ainda é mulher. A sociedade é machista, a sociedade é racista e você carrega este contexto todo e a gente precisa lutar contra este contexto todo. A gente precisa ensinar as pessoas verem de outra forma, de olhos de dentro da gente.

Você como negra, o que você diria para os brancos que querem lutar contra o racismo, que querem lutar pelo direito dos negros. O que você falaria para esses brancos?

Eu acho que a união faz a força. Eu acho que vale a pena insistir nisto, pois existem pessoas brancas que defendem o negro e lutam por isto e que continuem lutando. Para esse movimento fortalecer e para que isto mude. 

E para o negro que quer lutar contra o racismo, o que você diria?

Não abaixa a cabeça, levanta a cara. É libertador quando você consegue falar, mesmo que sendo agressivo, mas é libertador. Eu já sofri vários assédios e dá um medo. O fato é que as pessoas são extremamente desrespeitosas e maldosas. Eu falo para o “negro”: não abaixa a cabeça, se coloca no lugar no lugar em que você tem de se colocar. Hoje a gente tem que abrir a boca sim, tem que denunciar sim, tem que levar para frente sim. Porque as pessoas precisam começar a respeitar a gente. Já passou da hora. A minha irmã sofreu preconceito quando estava grávida e passeava no shopping. Ela me ligou chorando. Eu disse “eu estou indo te buscar agora”. E eu chorei junto com ela porque eu achei de tamanha maldade, tamanho desrespeito. Uma gestante linda e maravilhosa e negra ser maltratada. Isso para mim, na fase em que ela estava foi difícil, eu chorei junto com ela. Eu disse para ela, ‘por que você não chamou a polícia?’. Ela me respondeu: “eu não consegui, foi tão agressivo que eu não conseguia nem me mexer’. É isso que acontece com a gente. É tão forte o racismo que você fica paralisado. 

Não abaixa a cabeça, levanta a cara.

Uma coisa que, como negra, eu falo sempre é não se sentir inferior a ninguém. Cada um tem um espaço, o sol nasce para todo mundo e estamos todos no mesmo lugar. Em nível de pessoas e estrutura. As pessoas que precisam respeitar a gente. Eu lembro que na minha faculdade eram apenas duas negras em minha sala. E não dá para calar. Negro não pode calar diante dos fatos e também acho que não pode ficar chorando, se lamentando. A gente tem de se empoderar e viver feliz mesmo que, infelizmente, as pessoas se preocupam com a nossa alegria e com o nosso jeito de ser. Precisamos ser fortes e buscar sim apoio. 

Eu gostaria de terminar esta entrevista com a frase do pastor Martin Luther King Jr. falada no dia 28 de agosto de 1963 nos degraus do Lincoln Memorial em Washington, D.C.  em frente a uma plateia de mais de duzentas mil pessoas. Estas palavras estão presentes no famoso discurso “I have a dream – Eu tenho um sonho” que se eternizou como um dos maiores e mais belos discursos da história dos Estados Unidos. Martin Luther King expressou:

Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.

Sidilene, quais sãos suas palavras finais?

Eu comecei falando com amor e eu finalizo com o amor. Quando a gente tiver amor, respeito, empatia e se colocar no lugar do outro, independente da cor da pele, do tamanho, do sexo ou do gênero, com certeza iremos ser melhores um com os outros aqui na terra. E que o nosso brilho nos olhos influencie à outros. Que as nossas palavras e atitudes influenciem também. Então, que haja mais amor e que esse amor comece em mim. 

Se você quiser assistir o vídeo desse bate papo segue o link abaixo:

Pornografia na Quarentena

Bom, vamos começar este artigo definindo o que é pornografia:

  • Pornografia: substantivo feminino – Origem etimológica: porn(o)- + -grafia
    1. coleção de pinturas ou gravuras obscenas.
    2. característica do que fere o pudor (numa publicação, num filme etc.); obscenidade, indecência, licenciosidade.
    3. qualquer coisa feita com o intuito de ser pornográfico, de explorar o sexo tratado de maneira chula, como atrativo (p.ex., revistas, fotografias, filmes etc.).
    4. violação ao pudor, ao recato, à reserva, socialmente exigidos em matéria sexual; indecência, libertinagem, imoralidade.

Então quer dizer que estátua do David de Michelângelo é pornografia? Depende, se o intuito da obra na época que foi desenvolvida era ferir a moralidade, sim. Caso contrário, não.

Davi de Michelangelo

O que vemos aqui é que a pornografia tem relação direta com o tempo e a sociedade em que é produzida. Se você voltasse à Grécia antiga, corpos e esculturas com os “peitos de fora” não tinham conotação erótica sexual e representavam fertilidade e atributos da maternidade. 

Já no Japão atual, há uma cada vez mais popular forma de erotismo, o se fantasiar de boneca. Lá existem bares especializados nesse tipo de fetichismo. E fantasias desse tipo são verdadeiras febres eróticas nas lojas especializadas no assunto. 

Mas voltando pra nossa cultura, todos nós em algum momento já fomos expostos a pornografia, seja ela explícita ou em forma de softporn (pornografia não tão explicita) que cada vez mais se alastram pela web. A indústria pornográfica é um ramo muito lucrativo uma vez que seus clientes literalmente ficam viciados! E em época de quarentena ela se tornou mais atrativa ainda. 

Dados revelados pelo site PornHub, uma das principais plataformas de vídeos adultos do mundo, apontam que os acessos chegaram a crescer 28,9% no Brasil em relação à média diária, no último dia 29 de março. No índice mundial, o crescimento foi de 24,4%, segundo dados do próprio site. 

O que poderia explicar isso? O isolamento social está mexendo com a cabeça das pessoas? Ou era algo que já vinha acontecendo e só ficou mais frequente?Vamos discutir algumas possibilidades.  

Primeiramente, que em momentos de crise tendemos a voltar a agir de forma mais animalesca, mais instintiva. 

O sociólogo Richard Miskolci, relata que nesses momentos catastróficos apresentamos um comportamento que ele caracteriza como:

… uma necessidade de ser desejado, amado, confortado em tempos de incerteza e solidão que nos fragiliza e nos faz sentir mais vulneráveis, inclusive em termos afetivos. 

E aqui precisamos entender que crise – seja ela uma guerra, uma catástrofe ambiental ou uma epidemia – vai sempre despertar em nós os desejos mais primitivos. Nestes momentos vamos retroceder a fases mais iniciais da nossa vida. Nos quais os impulsos surgem e nossa capacidade de controlá-los diminui bruscamente. Na crise nosso corpo clama por prazer, comida e sono basicamente…

Quem nunca ouviu sobre os estupros causados pelos soldados após as batalhas. Atos que muitos nunca fizeram ou fariam de novo e que depois ficam como traumas que precisam de tratamento psicológico. 

De onde veio essa pulsão, esse desejo sexual que não foi controlado e acabou sendo expressado de forma tão violenta? Eles fizeram isso por pura maldade e perversidade ou existe algo mais? Por que este não é um comportamento comum a soldados fora das guerras? Justamente porque fora das crises nós aprendemos a sublimar nossos desejos, nossas pulsões. 

Aprendemos a não satisfazer todas a necessidades corporais. Controlamos o desejo alimentar, o sono entre outros impulsos do corpo. Também reconhecemos que ninguém pode tudo e nem tudo pode ser feito…

Isto acontece pois desenvolvemos um mecanismo que chamado sublimação. 

Para a psicanálise a sublimação é a capacidade de transformar nossos impulsos primordiais, nossos desejos mais instintivos e ligados basicamente a obtenção de prazer e sobrevivência imediata em capacidades mais desenvolvidas e que permitem a vida em sociedade.

Freud definiu sublimação como o processo de dar uma forma mais madura aos instintos sexuais transformando-os em atos de maior valor social. Ele diz em Um Mal Estar na Civilização, que a sublimação é:

[..] uma característica especialmente notável do desenvolvimento cultural; [esta] é o que possibilita que atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, desempenhem um papel tão importante.

Em outras palavras, dar uma vazão sublimada ao impulso sexual é o que possibilita nosso progresso enquanto sociedade. No caminho contrário temos a dominação pelos insistimos sexuais que leva a diminuição da capacidade criativa, científica e de raciocínio crítico. 

No tédio causado pelo estresse do confinamento social e da pandemia o consumo de pornografia é uma forma de aliviar essa energia acumulada. Porém, nossa sociedade já vinha sofrendo com uma baixa uma baixa capacidade de sublimação muito antes da crise do corona vírus. E agora, nesse momento de pandemia, fica mais difícil para indivíduo perceber que tipo de motivação o está levando a procurar a pornografia. É a necessidade de prazer como um adulto ou como uma criança? 

E a masturbação é a principal forma de manejar e alcançar este prazer.

Lembrando que masturbação é:

…a manipulação dos órgãos genitais com intuito de obtenção de prazer, visando ou não ao orgasmo.

Voltando a discutir sobre pornografia e a pandemia vemos que avaliando a sociedade atual, mesmo antes da epidemia de covid-19, nós já vínhamos desenvolvendo uma baixa capacidade de lidar com a frustração e aceitar os limites. Nossa capacidade de sublimar está cada vez menor. Não entendemos que limites são libertadores. 

Talvez isso seja uma parte difícil de compreender: “o limite é libertador”. O “não poder” abre novas possibilidades, ele desafia a nós mesmos a nos reinventarmos. 

Boa parte dessa não aceitação, esse estado de inadequação coletiva, vem da indústria capitalista que busca indivíduos socialmente frustrados em suas pulsões e que queiram satisfaze-las de forma rápida e instantânea. Elas dizem a todo momento, se conecte as suas necessidades, não importa quais sejam, e deem vazão a elas, não importando de que forma seja… 

Mas será que isso é benéfico para o indivíduo?

Neste ponto, a masturbação e o vício em pornografia são uma evidência clara disto: “você está em casa com muito tédio, seu celular pode te “satisfazer”, é só você acessar um conteúdo pornô e gozar…”. 

Mas não é um deleite integral e nunca será. Não há satisfação libidinal completa sem compartilhar o jogo erótico físico/sensorial com o outro. 

Embora alguns especialistas na área apresentem opiniões divergentes, para a maioria fica claro que o consumo de pornografia e a masturbação são uma manifestação infantil da pulsão sexual. 

Um adulto que tem como única forma de obtenção de gozo a masturbação é como se ele usasse chupeta/bico ainda na rua. Você estranharia muito ver um adulto de chupeta e de terno e gravata.

Isto ocorre pois esperamos que adultos consigam ter domínio próprio e lidar melhor com as frustrações e venham a manifestar sua sexualidade de forma plena em um relacionamento com intimidade, contato físico e troca de afetos.

Mas, como já falei antes, a crise que estamos vivendo faz com que voltemos a ter impulsos e desejos primitivos. 

Discutir isso agora seria parte de um processo de aprimoramento de nossas sexualidades. E também acredito que esta crise nos dá espaço para nos reinventarmos. Ela nos limitou em nosso ir e vir mas também nos permite entrar em contato com nosso eu de forma mais plena.

Bom, e para finalizar gostaria de deixar 3 pontos chaves para reflexão:

- Onde você tem passado a maior parte do seu tempo, no real ou no virtual? 

- Você é dominado pelos seus impulsos ou consegue controla-los? (sejam eles de comprar, comer, beber, masturbar-se, entre outros…). 

- Você está viciado em pornografia?

E lógico se você refletiu nestes pontos e acha que precisa evoluir em algum deles, te aconselho a fazer terapia com um bom psicologo/ psicanalista ou procurar ajuda psiquiátrica médica relevante.

Finalizando vou deixar como dica um vídeo aqui, muito legal, que fala sobre como a pornografia age no cérebro e o como esse vício não é nada diferente do vício em drogas, álcool ou outros tipos. Chama-se The Great Porn Experiment – Gary Wilson – entre no vídeo e ative a legenda em português.

Além disso gostaria muito que você lesse o artigo no blog da boitempo –  Sexo em Tempos de Coronavírus –  Slavoj Žižek – o link segue abaixo.

É isto, espero que vocês tenham curtido este assunto. Se você tiver alguma dúvida pode me enviar na caixa de contatos e podemos conversar mais sobre o assunto.

Me Amar É…

Esses dias me peguei refletindo sobre por que damos tanto errado no amor ao próximo? Por que tantos relacionamentos não dão certo? Por que parece que o amor das pessoas pelo próximo se acabou?

Uma das conclusões a que cheguei foi que não se pode dar aquilo que não se tem. Se eu não me amo eu não tenho condições de amar em plenitude ã alguém.

Dessa forma resolvi refletir sobre o amor baseando-me em uma linda música do grupo Legião Urbana – Monte Castelo. O compositor da letra, Renato Russo, se baseou em dois grandes textos sobre o amor. O primeiro foi um soneto de Luís de Camões(1524 – 1580), poeta português  que lemos abaixo:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
 
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.
 
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
 
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Mas nesse momento vamos usar o texto da música do Legião Urbana que  popularizou este poema e o texto bíblico de 1 coríntios 13 para retratar o amor no sentido de amor próprio… Amor por si mesmo.

Eu separei alguns fragmentos que gostaria de discutir tendo em vista o amor citado na música como o ideal de amor próprio.

“O amor é bom, não quer o mal…” fazendo a releitura “O amor [próprio] é bom, não quer o mal [para si mesmo] … 

Quantas escolhas fazemos para nós mesmos que são péssimas. Algumas destas até são involuntárias, mas outras nós bem sentimos que não deveríamos ter feito, mas silenciamos essa voz de alerta e fazemos. 

Ao me amar de verdade eu tento escolher coisas boas para mim. Eu presto atenção em como me alimento, no tipo de bebida que ingiro e até mesmo no tipo de informação que eu busco. Quando eu me amo profundamente eu não me mantenho em relacionamentos abusivos e nem permito que outros tenham poder sobre mim de me machucar.

Amar a si mesmo em profundidade é querer o melhor para si e isso não tem nada a ver com egoísmo. Até porque o egoísta tem uma noção de amor próprio tão prejudicada que se vê tão destituído de valor que necessita que tudo e todos girem ao seu redor e ajam em sua função. E isso não é amor próprio verdadeiro.

O próximo trecho diz: “Não sente inveja…”. Quando eu me amo profundamente, quando meu valor próprio está preservado eu não tenho um olhar de desejo sobre o que o outro tem. O invejoso tem uma autoestima tão baixa que vive vendo valor nas coisas do outro e não nas que possui e por isso inveja a vida alheia. O invejoso que viver a vida do outro. Ele pode até conquistar as coisas invejadas, mas estas não lhe trarão satisfação pois ele não se sentirá completo com elas…

A múscia continuar: “[o amor próprio não] “…se envaidece…”.

Quando eu me amo em profundidade eu não enxergo valor naquilo que ostento. Eu não preciso ser uma árvore de natal cheia de joias, relógios, carros e outras coisas para mostrar aos outros meu valor, uma vez que meu valor está naquilo que sou. O amor próprio enxerga valor em qualidade intrínsecas e profundas como suas habilidades, seu caráter integro e “no que você é…”. 

E aqui é uma parte difícil, o que você é? Não estou falando de profissão, de papel social, de ser pai/mãe ou algo assim, mas o que você é quando deita e fica sozinho a noite no quarto no escuro? Essa pessoa que você vê ali é digna de amor? Você consegue amar ela? Se você nem reconhece quem é esta pessoa ou consegue amar ela, talvez seu amor próprio esteja bem prejudicado. 

Neste ponto, não sermos vaidosos, na sociedade capitalista atual talvez seja muito complicado. Tudo que ela faz é para quebrar nosso amor próprio e colocar valor naquilo que podemos compra, naquilo que nosso dinheiro pode adquirir. Quanto mais você tem, quanto mais você ostenta, quanto mais você compra, mais valor você tem para a indústria capitalista. Porém nesta mesma proporção seu valor próprio se esvai…

Estudos mostram que pessoas que postam muitos “selfs” nas redes sociais na verdade possuem baixa autoestima. Outras pesquisas demonstram que o excesso de valorização da aparência física e do corpo também está presente em pessoas com pouco amor próprio. 

Quando eu desenvolvo o amor próprio em quantidade suficiente eu não preciso me envaidecer. Mas isso não é justificativa para não se cuidar e não buscar ter um corpo saudável, não querer se vestir bem. Lembre-se é o excesso que marca o patológico, nem oito nem oitenta

O próximo trecho é:

“O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente…”

Aqui aproveito para fazer uma crítica aos “coaches” e “digital influencers”. É incrível como neles o discurso de “eu consegui…”, “eu me amo…”, “eu não desisti…”, “eu isso… eu aquilo…” é um constante. É a famosa meritocracia. Óbvio que existem exceções, mas quem se ama de verdade não precisa ficar dizendo isso aos quatros ventos. E nem dizer que é por causa do tanto que se ama que ele conquistou o que queria. O amor é silencioso, ele não faz escândalo.

Na nossa geração chega a ser comum um post de uma “self” no Instagram® com uma legenda: “eu me amo mais que tudo…”, “ser feliz é conquistar o que se quer…”, será? Será mesmo que uma pessoa que se ama precisa colocar isso para julgamento de outros com curtidas e likes? E aguardar que outros validem seu amor próprio.

O poeta já dizia, amor “é fogo que arde sem se ver…”, quando menos esperamos o amor próprio já está dando frutos. E nem percebemos pois estes nascem naturalmente e não são pendurados como enfeites de natal numa árvore…

Quando eu me amo de verdade eu não preciso ficar dizendo e nem repetindo isso…

A música continua e tem outras partes igualmente lindas. Mas para não prolongar muito eu vou me atentar ao trecho que finaliza a música e que abre o texto bíblico. Vamos ler na versão da Bíblia A Mensagem…

“Se eu falar com eloquência humana e com êxtase própria dos anjos e não tiver amor, não passarei do rangido de uma porta enferrujada. 1 Coríntios 13:1 - MSG

O seja, se eu tive um lindo discurso e ser encantador como a voz de um anjo, mas se não tiver amor eu nada sou…

Sem amor próprio eu nada sou… Por isto, talvez estejamos passando por tanto sofrimento mental nos dias atuais. Quem sabe seja por isso que tantas pessoas estejam entrando em depressão ou pensando em desistir da vida. Talvez seja por isso que vemos tantas pessoas que não conseguem demonstrar empatia e consideração. O amor de muitos está ausente pois o amor próprio se esfriou. Se não me amo não sou capaz de amar alguém.

Uma das causas disso, volto a dizer, é o capitalismo nos pisoteia em nosso amor próprio ditando o tipo de corpo, de roupa, de carro e de vida que temos que ter… E quando não alcançamos nos sentimos os piores. O capital vive de dizer que você está inadequado, que seu corpo está ruim, que você não atingiu um padrão satisfatório justamente para que você possa gastar dinheiro buscando valor no externo. Investindo nas aparências…

As redes sociais nos massacram diariamente com a vida “linda e cheia de felizes para sempre…” das pessoas. Nunca o ditado “a grama do vizinho sempre é mais verde” fez tanto sentido. Mas se a grama de esta mais verde é só você cuidar da sua que ela também vai ficar verde, do seu jeito, mas vai. 

E não podemos esquecer da religião tóxica que existe para dizer que “devemos pensar sempre nos outros”,  “sempre aceitar tudo que o outro nos faça” e até mesmo nos aconselham a permanecer “em relacionamentos abusivos que só nos destroem pois se você ama de verdade você tudo suporta…”. Tal teologia intoxicante é facilmente explicável uma vez que menos amor próprio menos pensamento crítico. Desse modo as pessoas são mais facilmente manipuláveis e se tornam mais vulneráveis ao controle dos lideres religiosos… Só que estes mesmos esquecem que na Bíblia está escrito em forma de regra de vida: “amar a si mesmo e ao próximo na mesma…”. Não está dizendo ame mais o outro e a você menos.

Vendo assim, nesse contexto amplo vivemos numa época na qual nunca foi tão difícil se amar. Mas a música Monte Castelo já dizia: “…Sem amor [próprio], eu nada seria…”.

Sem amor por mim mesmo eu nada sou… Vou repetir, sem amor por mim mesmo eu nada sou…

Por isto cuide: do seu corpo, da sua mente, do que você come, com quem você divide seus sentimentos e com quem você compartilha sua intimidade

Se ame mais pois sem amor você não é nada…