Amor na Quarentena

Vamos começar este texto com um questionamento: vale a pena acreditar no amor mesmo em época de pandemia? 

Talvez você já esteja desiludido(a) com o amor, ou até mesmo achando que você tem algum defeito e que nunca vai conseguir encontrar o “grande amor da sua vida”. Esses e outros questionamentos chegam a ser angustiantes para alguns.

Esses dias eu recebi a seguinte mensagem de uma seguidora, que mostra o quanto o sofrimento por causa do amor é intenso e pode causar problemas para a saúde mental de um indivíduo. Vou compartilhar com vocês:  

“Olá doutor, gostaria muito de entender se tenho algum problema. Não dou certo em nenhum dos relacionamentos que já tentei. Tenho 34 anos, já fui casada e tive alguns namoros, mas tudo sempre acaba pelo mesmo motivo. Acho que o problema está comigo, devo ter algum defeito. To começando a ter dificuldades de mostrar amor e me tornando uma pessoa fechada. Acho que estou deixando de acreditar no amor…”.

Ela me conta outros detalhes, mas eu queria me atentar a dois pontos neste relato:

  • Ela está colocando em dúvida a existência do amor.
  • Ela acha que o problema está nela.

Fiquei imaginando o sofrimento que esta moça está passando e que pode representar o sofrimento que muitos também estão vivendo. E lógico que, quando chega o dia dos namorados, essa sensação de inadequação pode ficar pior e até deprimir uma pessoa.

Aqui é necessário contextualizarmos o dia dos namorados no Brasil uma data comemorativa de origem comercial – capitalista em essência. A ideia de criar esta data veio do publicitário João Dória, pai do atual governador do estado de São Paulo João Dória Jr.. Ela deveria ser como outras datas, como o dia das mães e pais, um dia para troca de presentes e assim movimentar a economia no mês de junho, que era um mês fraco para o comercio varejista. 

A data de 12 de junho foi escolhida por ser véspera da celebração do dia de Santo Antônio, popularmente conhecido como santo casamenteiro. O dia dos namorados brasileiro começou a ser celebrado em 1948 na capital paulista e no ano seguinte já se alastrou pelo país a fora.

Hoje, está data já é a terceira em faturamento para o comércio – ficando atrás do Natal e do dia das Mães. Percebam que o tema “amor” está por detrás dos três principais faturamentos para o comércio no país. E aqui já podemos perceber o quão lucrativo é para o sistema capitalista fazer com que você não passe o dia dos namorados sozinho ou mesmo que se mantenha em um relacionamento ruim.

Mas voltando aos dois pontos que separei da mensagem da nossa seguidora, vamos ao primeiro ponto:

  • Ela está colocando em dúvida a existência do amor

E você, acredita no amor? Ou também está como ela já desacreditando? O que é o amor para você?

Se você acha que “o amor não é uma pontada no peito que aperta, te sufoca e faz suspirar… o nome disso é infarto agudo do miocárdio” – o amor é outra coisa...
“Amor também não é uma sensação de formigamento na qual as pernas ficam bambas e você perde as forças, o nome disso é derrame cerebral” – o amor é outra coisa...
“Amor não é algo que te faz perder o ar, ficar de boca aberta e mal conseguir respirar, o nome disso é bronquite asmática” – o amor é outra coisa…

Então o que é o amor? 

Vamos tecer nossa discussão, utilizando como base o legado teórico deixado por duas grandes figuras da história humana C.S. Lewis e Sigmund Freud. 

Para responder o primeiro ponto da mensagem da nossa seguidora, no qual ela coloca em dúvida a existência do amor, vou a definição de amor proposta por C.S Lewis.

Ele foi um professor na universidade de Oxford e Cambridge e grande escritor britânico, um teólogo e autor de diversos livros e textos, entre eles as Crônicas de Nárnia, Cristianismo Puro e Simples e entre outros. Que inclusive recomento muito a leitura. 

Vamos utilizar o conceito que ele aborda sobre o amor no livro: “Os Quatro Amores” no qual Lewis descreve a existência de quatro tipos de amores (seguindo a tradição grega):

  • Afeição, a forma mais básica de amar; 
  • Amizade, considerada a mais rara; 
  • Eros, o amor apaixonado;  
  • Caridade, o maior e menos egoísta deles.

Neste texto, vamos fixar nossa discussão na caracterização do amor Eros – romântico – que envolve os apaixonados.

Vamos analisar uma passagem bem conhecida do livro: 

“O simples fato de se amar é uma vulnerabilidade. Ame alguma coisa e seu coração certamente ficará apertado e possivelmente partido. Se quiser ter certeza de que seu coração ficará intacto, não deve oferece-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Use passatempos e pequenos luxos para envolvê-lo cuidadosamente; evite todas complicações; tranque-o de forma segura no caixão de seu egoísmo.”

C.S. Lewis – Os Quatro Amores

Vemos que Lewis dá pistas sobre o que é amor, ou melhor, como viver o amor na prática.

Primeiramente ele demonstra que a possibilidade do amor existe na premissa da vulnerabilidade. Ele diz: “O simples fato de amar é uma vulnerabilidade.”. O amor só é possível quando baixamos a guarda e possibilitamos nossa entrega e ao mesmo tempo o receber do outro. 

Com portas fechadas não há possibilidade de visitas ao coração. Não podemos ter vergonha dos móveis, das plantas e das paredes da nossa casa do coração. Estar vulnerável é se abrir para o outro estando confortáveis com o nosso eu, com o que somos. Ou seja, precisamos estar bem com nós mesmos para nos abrirmos para uma relação com o outro. 

Baseando nisto, concluímos que o amor existe. Ele pode ser visto nas suas diversas formas, mas é nosso comportamento com relação ao objeto em que depositamos afeto que realmente vai ditar a saúde emocional desse amor.

Muitos há que reclamam de estarem sozinhos ou que seus relacionamentos não duram, como nossa amiga em sua mensagem para mim.  Mas, eu pergunto, será que estão dispostos a se tornarem totalmente vulneráveis? Será que os medos, inseguranças ou traumas do passado os impedem de vivenciar o amor? Será que existe um “dedo podre” que no faz escolher sempre errado?

Neste ponto, vamos discutir o segundo ponto que separei da mensagem da nossa seguidora:

  • Ela acha que o problema está nela.

E para isso vamos usar a definição de amor que o pai da Psicanálise nos presenteou. Talvez a grande a revelação de Freud para a humanidade seja para entendermos nosso “dedo podre…”.

Para Sigmund Freud, em seus estudos sobre a mente e o comportamento humano, existem dois tipos de amor:

  • o amor genital (sexual);
  • o amor inibido ou afeição.

O amor seria resultado do investimento pulsional que fazemos no objeto/sujeito. O amor genital seria aquele une indivíduos e que mantém um conteúdo consciente de desejo sexual.

Somado a essas definições de amor, Freud deu importante contribuição para o entendimento de como nosso passado afeta nossas relações atuais quando ele construiu a teoria da transferência. 

Nesta ele evidência que os sentimentos envolvidos nos relacionamentos correm em mão-dupla. Há uma parte na qual projetamos sobre o outro e uma parte que é projetada do outro sobre nós.

Freud percebeu que nós reagimos e nos relacionamos com uma pessoa não somente com base em como experimentamos a pessoa conscientemente, mas, também, com base na nossa experiência inconsciente tendo como modelo nossos relacionamentos do passado. 

Trazemos um relatório de coisas positivas e negativas das relações afetivas que vivenciamos desde que nascemos até a idade em que estamos. Estas informações ficam no nosso inconsciente e esse relatório afeta nossas escolhas no presente.

Esse processo pode influenciar, em níveis variados, a nossa escolha de amigos, namorados(as) e maridos/esposas.

Você já deve ter se perguntando por que um rapaz, no meio da balada, com várias opções de escolha, escolhe um mesmo padrão de sujeito, com até características físicas semelhantes aos que ele já escolheu em outras vezes? Gosto pessoal? Freud nos diz que é muito mais que isto.

Várias vezes no consultório eu já perguntei: 

“Você não acha que você está escolhendo com um mesmo padrão? Não são os mesmos tipos de aparência, cor de cabelos entre outras características? Você vê semelhanças entre seus exs e seu atual?

E quão espantados/espantadas ficam os pacientes ao perceberem que seguem um padrão muitas vezes inconsciente de escolha. Deste modo, podemos dizer que o “dedo podre” existe e tem origem lá na nossa infância e cresce sendo adubado pelos tipos de interações interpessoais que construímos na nossa vida.

Então, respondendo o segundo questionamento da nossa amiga que acha que o problema está nela, sim, ele está nela.

Isto não invalida a responsabilidade do outro com os afetos dela. Se um cara resolve brincar com os sentimentos dela, isto mostra uma perversidade afetiva nele. Porém saber que boa parte do problema está com ela lhe torna poderosa o suficiente para poder resolve-lo. Além de empoderar ela para que seja livre para não escolher um sejeito assim novamente.

Então como melhorar um “dedo podre”? Podemos curá-lo?      

A forma de arrumar isto seria fazendo terapia, procurando nos entender. Também passa por fortalecer nossa autoestima – nosso amor próprio. De igual modo, é olhar para nosso passado e perceber como ele tem influenciado nossas relações presentes.

Mas a esta altura você deve estar dizendo: “Doutor,  e o que tem haver tudo isso com a quarentena/pandemia?”

Bom, até aqui vimos que tanto Lewis quanto Freud nos mostraram que o amor romântico é baseado na troca de afetos. O isolamento social tem nos mantido distantes dos nossos amores ou dos locais que comumente procurávamos um relacionamentos.

Embora o amor possa acontecer em qualquer lugar, da fila do supermercado a uma voltinha no parque, neste momento muitos têm buscado parceiros em apps de relacionamento. 

Estes apps podem ser comparados a um açougue no qual você chega, escolhe a melhor carne e pede pra embalar para comer depois em casa. Você pode dar sorte de comprar uma boa carne só pela aparência. Mas também você corre o risco de ser enganado pelo açougueiro, pagar por uma carne de primeira e ao ir quando for degustar a carne perceber que é uma carne de segunda, dura e ruim para se mastigar.

Tudo bem que este é um risco que temos em relacionamentos que se iniciam no mundo real. Mas a chance de ser iludido neste tipo de relação virtual é maior. 

Lembrando da teoria de Freud, na nossa transferência, projetamos no outro desejos e necessidades que são nossas, que partem de nossos relatórios inconscientes. Numa relação sempre há o risco de ser decepcionado, de termos o coração partido, tal como lemos no trecho de “Os Quatro Amores de C.S. Lewis”: 

“Ame alguma coisa e seu coração certamente ficará apertado e possivelmente partido.”

C.S Lewis – Os Quatro Amores

Quando avaliamos a possibilidade de decepção em relações que permanecem no virtual, percebemos que a todo momento o investimento libidinal é feito no território da projeção. E isto deixa os indivíduos nela envolvidos mais vulneráveis que o normal.

Então podemos dizer que é pior ter relações advindas de aplicativos de relacionamento? Não, pelo contrário, seriamos muito imprudentes ao afirmar isto. 

Faz muito pouco tempo que este tipo de encontro afetivo começou. Como vimos, nosso conteúdo inconsciente advém de relações reais e não virtuais. Talvez precisemos realinhar nosso conhecimento e nos preparar melhor para perceber a possíveis enrascadas afetivas em que estamos nos envolvendo no mundo virtual.

Contudo uma coisa é certa, em algum momento essa relação tem que vir para o mundo real. Ela tem que se materializar em forma de beijo, toque, cheiro e contato sexual íntimo.

Vamos finalizar deixando dois questionamentos para refletirmos sobre a busca de parceiros afetivos:

1 – Será que todos temos a obrigação de estar com alguém? De onde vem essa regra que a todo custo você tem que se relacionar ou mesmo se manter em relações abusivas só para não ficar sozinho?
2 – Nossos mapas de vida são capazes de reconhecer e atuar de forma clara para nos impedir de entrar em um relacionamento furada – será que eles não favorecem nosso “dedo podre”?

Sobre o primeiro ponto, a necessidade de estar com alguém e a solidão, vou deixar aqui uma frase de C.S. Lewis:

“Se tudo o que entendemos por amor é a ânsia de sermos amados, nossa condição é deplorável.”

C.S. Lewis – Os Quatro Amores

Essa necessidade que alguns possuem de procurar um relacionamento a qualquer custo não é saudável. Seja por carência afetiva, seja por ser fruto de uma criação machista ou até mesmo uma baixa autoestima; vários são os motivos podem levar um indivíduo a buscar inconsequentemente um relacionamento. “Antes só do que mal acompanhado” é um excelente ditado da sabedoria popular.

Sobre o segundo ponto, temos que a tecnologia nos deu esta possibilidade, mas ainda estamos engatinhando na capacidade de lidar com ela de forma madura. Ainda vamos percorrer um longo caminho até conseguirmos atualizar nossos mapas de vida para sermos mais hábeis em escapar de parceiros errados nestes apps.

Contudo, nada poderá melhorar se você não cuidar de você. Por isso eu te convido a ter uma escolha inteligente. Antes de emendar no seu próximo relacionamento, inicie um relacionamento íntimo com você. Desenvolva amor próprio e se for preciso procure ajuda terapêutica. Não cabe, em pleno século XXI, preconceito com os cuidados com sua saúde mental. 

Vale a pena acreditar no amor mesmo em época de pandemia?

Vale! Se você começar primeiro se amando, já que a chance de viver um amor saudável com alguém será muito grande.