Sidilene Antônia Mudesto

Mulher negra de 43 anos, que trabalha como nutricionista na periferia de São Paulo – Capão Redondo – há 12 anos.

Precisamos falar sobre racismo e o quanto ele é prejudicial para nossa sociedade. Neste artigo eu converso com Sidilene Atônia Mudesto, uma mulher negra de 43 anos, que trabalha como nutricionista na periferia de São Paulo – Capão Redondo – há 12 anos. Uma das situações motivadoras desse bate-papo foi a morte do norte americano George Floyd. Este homem negro foi assassinado friamente por um policial branco que ficou com seu joelho em cima do pescoço de Floyd por 8 minutos e 46 segundos enquanto aquele suplicava por sua vida 11 vezes clamando que não conseguia respirar. Nesta entrevista vamos dar voz ao lugar de fala de Sidilene. Através de suas experiências de vida refletiremos sobre como nos dias atuais se tornou ainda mais necessário discutirmos sobre racismo

Pra você racismo existe?

Existe e em alguns momentos ele é velado, estruturado, mas ele existe. É que a gente pensa que foi uma brincadeira… A gente aprendeu a lidar com isso. Eu acho que a força que a gente tem dentro é tão grande que às vezes recebemos uma agressividade e você pensa “será que foi mesmo? Será que ele quis dizer isso?”, como que conota isso para a gente? Mas ele existe sim.

E a partir desta vivência, qual seria a definição de racismo para a Sidilene?

Racismo para mim é falta de amor. É falta de amor porque quando a característica, não só a cor, sobressai ao que eu sou como pessoa isto é para mim totalmente falta de amor. Eu acho que a pessoa não tem respeito e amor por ninguém quando ela pratica racismo.

O dicionário define racismo como: 

  1. Conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias.
  2. Doutrina sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras.
  3. Preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, geralmente considerada inferior.
  4. Por analogia, atitude de hostilidade em relação a determinada categoria de pessoas.

Percebemos que o racismo tem um pressuposto no qual existe uma raça, um determinado grupo de pessoas que possui superioridade e está acima, no sentido de valor, de um outro. 

O racismo já trouxe muitos problemas na história humana e muitas guerras já foram travadas por isto. Em todos os continentes vemos relatos de massacres de povos e não existe um país que não tenha sofrido com o racismo ou que não tenha seu solo manchado pelo sangue de escravos. 

Você percebe algum lugar no qual o racismo seja pior? Um ambiente, um país ou mesmo uma região do Brasil?

No Brasil a gente vê muita desigualdade. Eu trabalho na periferia. Se vemos um negro dirigindo um ‘carrão’ alguém olha, a polícia para. Geralmente quando a polícia para fazer algumas vistorias, alguma ‘batida’, é geralmente um negro que eles estão lá, apalpando e fazendo isto de um jeito agressivo… Se você vai em certos shoppings da cidade você não vê um negro trabalhando, é muito raro. Então eu acredito que tem sim alguns lugares em que o racismo é pior. E em contrapartida há alguns lugares também que quando eles veem um negro, acham bonito, eles olham com olhares de encantamento.

Você já sofreu racismo?

Eu já. Eu fui para a Bahia, fiquei alguns dias lá e voltei ‘mais’ negra, mais preta do que eu sou, e fiz “marquinha” de biquini. E certa pessoa na empresa em que eu trabalhava falou “nossa, você̂ queima?”, então eu disse “sim”. E ela continuou: “e quando você̂ queima, arde?”, então eu falei: “deixa eu te falar uma coisa, quando eu me sento no vaso, saí número dois, quando eu corto sai sangue…”. Eu não consegui falar mais nada para esta pessoa. Isso aconteceu há uns 10 anos e está gravado até hoje. O que mais me chocou é que, esta mulher que falou isto, é filha de negra. Pela minha trajetória eu acredito que o racismo é ensinado. Eu passei por isto e consigo lidar bem com isso. Se isto vier de novo eu acredito que consiga lidar novamente. O que é mais gostoso é você ter maturidade de não ser tão agressiva. Porque a agressividade faz isto com a gente, ela faz a gente devolver de repente de um jeito ruim. E vale a pena discutir certas coisas com sabedoria, com equilíbrio, com recursos de fala.

Pela minha trajetória eu acredito que o racismo é ensinado.

Esse racismo já aconteceu no seu ambiente de trabalho?

A gente percebe olhares diferentes. A gente trabalha em uma unidade de saúde, então quando me veem sem jaleco ou sem crachá, pensam que eu possa ser uma mocinha da limpeza. E quando você se apresenta como nutricionista, ou como médica ou como fisioterapeuta as pessoas te olham torto. Você percebe um olhar, de em cima até embaixo, até chegar no seu rosto. O quanto que isto é ruim, deprimente. Às vezes você fala como que ainda pode no mundo existir isso?

George Floyde

Faz poucos dias – 25 de maio de 2020 – assistimos chocados, pelo menos os que ainda possuem um traço de humanidade, a morte de George Floyde homem negro, de 46 anos, morto por asfixia mecânica sob o joelho de um policial branco enquanto clamava dizendo: “I can’t breathe” traduzindo: “eu não consigo respirar…”. 

Sidilene, você viu o vídeo da morte de George Floyd

Vi. Eu confesso que quando vi o vídeo, no dia 25 de maio, a gente já estava sofrendo muito em São Paulo, com as questões da pandemia do Covid-19, estávamos todos muito fragilizados. Mas esta reportagem me chocou muito porque o policial estava em cima dele. E no primeiro momento eu pensei “não quero ver isso porque é muito chocante, muito sofrimento”, e não assisti. Mas depois eu assisti o vídeo e realmente é triste demais, a técnica que ele aplicou é a técnica do estrangulamento. Ele pediu 11 vezes para ele parar, que ele não estava conseguindo respirar e não houve nenhum movimento de respeito contra aquela vida. Independente da cor que estava ali, era um ser humano.

Que sentimentos você tem ao ler esta notícia?

Tristeza. Raiva. Angústia. Dó. Impotência. Sentimentos de dor mesmo. De não conseguir fazer nada. E foi-se uma vida. Foi-se várias outras vidas. Quantas vidas realmente já se foram com atitudes grosseiras como essas? Então isto realmente foi de querer chorar, de fica com um ‘nó’ na garganta. Quando você retorna à este vídeo é forte demais. Eu lembro que virei logo, que sai da página para não querer ver mesmo, porque é uma coisa que machuca. 

Esse acontecido provocou uma onde de protestos pelo mundo. Você acha isso uma forma válida de lutar contra o racismo?

Eu acho. Foram depredados muitos patrimônios, foram invadidas algumas lojas e teve alguns feridos. E tem gente que fala assim: “nossa, mas é muito barulho…”. Eu acho que a gente não pode parar de gritar. Se a gente está falando baixo e as pessoas não estão ouvindo, a gente precisa continuar gritando até que alguém escute. Não sou a favor de agredir, derrubar, destruir. Mas repare a agressividade que é o racismo. Olha o sofrimento que causa em um monte de outras pessoas, inclusive naquelas pessoas que estão lá, tentando defender. Eu acho que tem que continuar gritando sim.

Em um desse muitos protestos manifestantes queimaram a delegacia de Minneapolis na qual trabalhavam os policiais assassinos – sem ninguém dentro do prédio.  Pra você isso é um exagero ou uma reação esperada pelo nível de violência que os negros vêm sofrendo?

Delegacia de Minneapolis – fonte divulgação.

Foi uma reação esperada. A violência ao patrimônio é uma coisa muito ruim. Mas o racismo também é agressivo. É uma violência forte. Então, esses tipos de coisas precisam acontecer. Na realidade eu acho que as pessoas estavam tentando mostrar de forma pacífica as suas inquietações, o que não estavam gostando. Infelizmente aconteceu a queima dos patrimônios, de locais que estavam vazios. Mas eu sinto que o racismo é maior e mais violento que a própria queima dos patrimônios.

Trazendo para nossa conversa uma citação de Angela Davis, uma mulher negra, pensadora, sociológica e filosofa. Ela diz assim:

quando a vida das mulheres negras realmente tiver importância o mundo será transformado.

Você Sidilene, mulher negra, você se acha mais vulnerável ao preconceito racial?

Eu me acho. E é por isso que a voz da mulher negra precisa começar a aparecer, é necessário valoriza está voz mais um pouco. Porque a gente aprendeu a ser um pouco mais agressiva para dar conta de tudo isso.

Uma mulher negra é conhecida por saber dançar, se uma mulher negra não sabe dançar, as pessoas falam: “como não sabe dançar?” Tem que ter o samba no pé. Tem que ter “corpo violão”. Eles olham para a gente e pensam “globeleza” ou a empregada doméstica. E isso precisa mudar. Existem mulheres negras que não tem o samba no pé e existem mulheres negras que tem outros conteúdos.

É um desafio você explicar que o osso da negra pesa mais que o osso da branca, as mulheres negras se assustam. Até elas entenderem que uma negra é linda da maneira que ela é independente do tamanho dela é um processo demorado que busco no atendimento como nutricionista. É algo que tenho que desconstruir o tempo todo no consultório.

Acho que a mulher negra precisa entender o espaço em que ela ocupa. Eu por exemplo tenho três irmãs. A minha irmã caçula é casada com um rapaz branco e ela tem dois filhos de pele clara. Ela mora em um condomínio na zona sul de São Paulo. Certo dia ela estava tomando sol no parquinho com as crianças e perguntaram se ela era babá das próprias filhas… Ela disse que eram os filhos dela, mas esta senhora, que fez esta pergunta horrível, foi insistiu no questionamento se ela era babá das crianças. Então minha irmã disse assim: “então, se a senhora insistir com essa história e vou na delegacia com a senhora. O que te incomoda? Eu ser negra e ter dois filhos lindos ou eu ser negra e morar no mesmo condomínio que a senhora?” É importante para a mulher negra entender a importância do local que ela ocupa.

Você sente falta de, na sua infância, a ausência de símbolos de mulheres negras nas mídias?

Na minha infância, a minha mãe conseguiu ser esse símbolo muito bem. Nós somos três mulheres, somos fortes. Na minha família, temos índios, italianos e negros, e por termos traços mais afinados, pelo cabelo não ser tão crespo, eu ouço: “até parece que você não é negra”. As pessoas falam isto para mim. A minha mãe trabalhou isto muito bem na gente: “você é importante do jeito que é…”. Ela dizia: “você precisa estudar, você precisa buscar o melhor para você e as pessoas precisam respeitar você como ser humano. 

Quando você fizer qualquer trabalho, você precisa fazer o melhor que você pode, independente se é limpando uma casa, limpando um chão, fazendo uma comida, ou atendendo um paciente”. Eu sinto falta de ter referência externa, mas eu tive referência dentro daminha casa que foi a minha mãe. Então para a gente isso foi muito forte, foi muito embasado em casa. A gentefoi para colégio interno e a gente conseguimos nos sair muito bem. 

Meus amigos me chamam de ‘nega’, ‘neguinha’ e é ótimo. Adoro receber este carinho. Quando me chamam de ‘minha nega’ eu respondo ‘oi, tudo bem?’ e o quanto é gostoso escutar ‘nega (negra)’, eu gosto muito e gosto que me chamem de ‘nega’ mesmo. Mas para isto, minha criação fez diferença. E eu sintoque eu preciso ser uma tia forte porque os meus sobrinhos estão crescendo. E quem sabe o racismo não vá mudar? A gente precisa ter esperança. 

O quanto que empoderar a minha sobrinha é importante. Ela tem o cabelo crespo, que é lindo e maravilhoso, e que a cor da pele faz parte, que a estrutura dela é linda e que ela é uma princesa e ela é linda. Ela tinha dois anos quando eu falava para ela: ‘você é negra sim. O seu cabelo é crespo sim. Mas você élinda. E eu já vou te falar isso porque quando alguém falar o oposto, você vai devolver que é meu cabelo é crespo sim e é lindo. E eu faço questão de repetir isso para eles, todos eles, todos os dias para que isto seja fortalecido. Ser negro não importa e não deveria mudar nada. Os meus amigos não me tratam diferente porque eu sou negra. 

Não precisamos, obviamente, sermos negro para lutar contra o racismo, embora o negro tenha um lugar de fala muito maior, muito importante e muito bom para poder discutir este assunto. Quanto que a segregação racial é prejudicial à sociedade e, pior: o quanto que o sexismo é pior. Ele piora mais a situação. Imagina esta separação que é feita, você negro, que tem um pele que chama atenção onde você vai, e você ainda é mulher. A sociedade é machista, a sociedade é racista e você carrega este contexto todo e a gente precisa lutar contra este contexto todo. A gente precisa ensinar as pessoas verem de outra forma, de olhos de dentro da gente.

Você como negra, o que você diria para os brancos que querem lutar contra o racismo, que querem lutar pelo direito dos negros. O que você falaria para esses brancos?

Eu acho que a união faz a força. Eu acho que vale a pena insistir nisto, pois existem pessoas brancas que defendem o negro e lutam por isto e que continuem lutando. Para esse movimento fortalecer e para que isto mude. 

E para o negro que quer lutar contra o racismo, o que você diria?

Não abaixa a cabeça, levanta a cara. É libertador quando você consegue falar, mesmo que sendo agressivo, mas é libertador. Eu já sofri vários assédios e dá um medo. O fato é que as pessoas são extremamente desrespeitosas e maldosas. Eu falo para o “negro”: não abaixa a cabeça, se coloca no lugar no lugar em que você tem de se colocar. Hoje a gente tem que abrir a boca sim, tem que denunciar sim, tem que levar para frente sim. Porque as pessoas precisam começar a respeitar a gente. Já passou da hora. A minha irmã sofreu preconceito quando estava grávida e passeava no shopping. Ela me ligou chorando. Eu disse “eu estou indo te buscar agora”. E eu chorei junto com ela porque eu achei de tamanha maldade, tamanho desrespeito. Uma gestante linda e maravilhosa e negra ser maltratada. Isso para mim, na fase em que ela estava foi difícil, eu chorei junto com ela. Eu disse para ela, ‘por que você não chamou a polícia?’. Ela me respondeu: “eu não consegui, foi tão agressivo que eu não conseguia nem me mexer’. É isso que acontece com a gente. É tão forte o racismo que você fica paralisado. 

Não abaixa a cabeça, levanta a cara.

Uma coisa que, como negra, eu falo sempre é não se sentir inferior a ninguém. Cada um tem um espaço, o sol nasce para todo mundo e estamos todos no mesmo lugar. Em nível de pessoas e estrutura. As pessoas que precisam respeitar a gente. Eu lembro que na minha faculdade eram apenas duas negras em minha sala. E não dá para calar. Negro não pode calar diante dos fatos e também acho que não pode ficar chorando, se lamentando. A gente tem de se empoderar e viver feliz mesmo que, infelizmente, as pessoas se preocupam com a nossa alegria e com o nosso jeito de ser. Precisamos ser fortes e buscar sim apoio. 

Eu gostaria de terminar esta entrevista com a frase do pastor Martin Luther King Jr. falada no dia 28 de agosto de 1963 nos degraus do Lincoln Memorial em Washington, D.C.  em frente a uma plateia de mais de duzentas mil pessoas. Estas palavras estão presentes no famoso discurso “I have a dream – Eu tenho um sonho” que se eternizou como um dos maiores e mais belos discursos da história dos Estados Unidos. Martin Luther King expressou:

Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.

Sidilene, quais sãos suas palavras finais?

Eu comecei falando com amor e eu finalizo com o amor. Quando a gente tiver amor, respeito, empatia e se colocar no lugar do outro, independente da cor da pele, do tamanho, do sexo ou do gênero, com certeza iremos ser melhores um com os outros aqui na terra. E que o nosso brilho nos olhos influencie à outros. Que as nossas palavras e atitudes influenciem também. Então, que haja mais amor e que esse amor comece em mim. 

Se você quiser assistir o vídeo desse bate papo segue o link abaixo:

Amor na Quarentena

Vamos começar este texto com um questionamento: vale a pena acreditar no amor mesmo em época de pandemia? 

Talvez você já esteja desiludido(a) com o amor, ou até mesmo achando que você tem algum defeito e que nunca vai conseguir encontrar o “grande amor da sua vida”. Esses e outros questionamentos chegam a ser angustiantes para alguns.

Esses dias eu recebi a seguinte mensagem de uma seguidora, que mostra o quanto o sofrimento por causa do amor é intenso e pode causar problemas para a saúde mental de um indivíduo. Vou compartilhar com vocês:  

“Olá doutor, gostaria muito de entender se tenho algum problema. Não dou certo em nenhum dos relacionamentos que já tentei. Tenho 34 anos, já fui casada e tive alguns namoros, mas tudo sempre acaba pelo mesmo motivo. Acho que o problema está comigo, devo ter algum defeito. To começando a ter dificuldades de mostrar amor e me tornando uma pessoa fechada. Acho que estou deixando de acreditar no amor…”.

Ela me conta outros detalhes, mas eu queria me atentar a dois pontos neste relato:

  • Ela está colocando em dúvida a existência do amor.
  • Ela acha que o problema está nela.

Fiquei imaginando o sofrimento que esta moça está passando e que pode representar o sofrimento que muitos também estão vivendo. E lógico que, quando chega o dia dos namorados, essa sensação de inadequação pode ficar pior e até deprimir uma pessoa.

Aqui é necessário contextualizarmos o dia dos namorados no Brasil uma data comemorativa de origem comercial – capitalista em essência. A ideia de criar esta data veio do publicitário João Dória, pai do atual governador do estado de São Paulo João Dória Jr.. Ela deveria ser como outras datas, como o dia das mães e pais, um dia para troca de presentes e assim movimentar a economia no mês de junho, que era um mês fraco para o comercio varejista. 

A data de 12 de junho foi escolhida por ser véspera da celebração do dia de Santo Antônio, popularmente conhecido como santo casamenteiro. O dia dos namorados brasileiro começou a ser celebrado em 1948 na capital paulista e no ano seguinte já se alastrou pelo país a fora.

Hoje, está data já é a terceira em faturamento para o comércio – ficando atrás do Natal e do dia das Mães. Percebam que o tema “amor” está por detrás dos três principais faturamentos para o comércio no país. E aqui já podemos perceber o quão lucrativo é para o sistema capitalista fazer com que você não passe o dia dos namorados sozinho ou mesmo que se mantenha em um relacionamento ruim.

Mas voltando aos dois pontos que separei da mensagem da nossa seguidora, vamos ao primeiro ponto:

  • Ela está colocando em dúvida a existência do amor

E você, acredita no amor? Ou também está como ela já desacreditando? O que é o amor para você?

Se você acha que “o amor não é uma pontada no peito que aperta, te sufoca e faz suspirar… o nome disso é infarto agudo do miocárdio” – o amor é outra coisa...
“Amor também não é uma sensação de formigamento na qual as pernas ficam bambas e você perde as forças, o nome disso é derrame cerebral” – o amor é outra coisa...
“Amor não é algo que te faz perder o ar, ficar de boca aberta e mal conseguir respirar, o nome disso é bronquite asmática” – o amor é outra coisa…

Então o que é o amor? 

Vamos tecer nossa discussão, utilizando como base o legado teórico deixado por duas grandes figuras da história humana C.S. Lewis e Sigmund Freud. 

Para responder o primeiro ponto da mensagem da nossa seguidora, no qual ela coloca em dúvida a existência do amor, vou a definição de amor proposta por C.S Lewis.

Ele foi um professor na universidade de Oxford e Cambridge e grande escritor britânico, um teólogo e autor de diversos livros e textos, entre eles as Crônicas de Nárnia, Cristianismo Puro e Simples e entre outros. Que inclusive recomento muito a leitura. 

Vamos utilizar o conceito que ele aborda sobre o amor no livro: “Os Quatro Amores” no qual Lewis descreve a existência de quatro tipos de amores (seguindo a tradição grega):

  • Afeição, a forma mais básica de amar; 
  • Amizade, considerada a mais rara; 
  • Eros, o amor apaixonado;  
  • Caridade, o maior e menos egoísta deles.

Neste texto, vamos fixar nossa discussão na caracterização do amor Eros – romântico – que envolve os apaixonados.

Vamos analisar uma passagem bem conhecida do livro: 

“O simples fato de se amar é uma vulnerabilidade. Ame alguma coisa e seu coração certamente ficará apertado e possivelmente partido. Se quiser ter certeza de que seu coração ficará intacto, não deve oferece-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Use passatempos e pequenos luxos para envolvê-lo cuidadosamente; evite todas complicações; tranque-o de forma segura no caixão de seu egoísmo.”

C.S. Lewis – Os Quatro Amores

Vemos que Lewis dá pistas sobre o que é amor, ou melhor, como viver o amor na prática.

Primeiramente ele demonstra que a possibilidade do amor existe na premissa da vulnerabilidade. Ele diz: “O simples fato de amar é uma vulnerabilidade.”. O amor só é possível quando baixamos a guarda e possibilitamos nossa entrega e ao mesmo tempo o receber do outro. 

Com portas fechadas não há possibilidade de visitas ao coração. Não podemos ter vergonha dos móveis, das plantas e das paredes da nossa casa do coração. Estar vulnerável é se abrir para o outro estando confortáveis com o nosso eu, com o que somos. Ou seja, precisamos estar bem com nós mesmos para nos abrirmos para uma relação com o outro. 

Baseando nisto, concluímos que o amor existe. Ele pode ser visto nas suas diversas formas, mas é nosso comportamento com relação ao objeto em que depositamos afeto que realmente vai ditar a saúde emocional desse amor.

Muitos há que reclamam de estarem sozinhos ou que seus relacionamentos não duram, como nossa amiga em sua mensagem para mim.  Mas, eu pergunto, será que estão dispostos a se tornarem totalmente vulneráveis? Será que os medos, inseguranças ou traumas do passado os impedem de vivenciar o amor? Será que existe um “dedo podre” que no faz escolher sempre errado?

Neste ponto, vamos discutir o segundo ponto que separei da mensagem da nossa seguidora:

  • Ela acha que o problema está nela.

E para isso vamos usar a definição de amor que o pai da Psicanálise nos presenteou. Talvez a grande a revelação de Freud para a humanidade seja para entendermos nosso “dedo podre…”.

Para Sigmund Freud, em seus estudos sobre a mente e o comportamento humano, existem dois tipos de amor:

  • o amor genital (sexual);
  • o amor inibido ou afeição.

O amor seria resultado do investimento pulsional que fazemos no objeto/sujeito. O amor genital seria aquele une indivíduos e que mantém um conteúdo consciente de desejo sexual.

Somado a essas definições de amor, Freud deu importante contribuição para o entendimento de como nosso passado afeta nossas relações atuais quando ele construiu a teoria da transferência. 

Nesta ele evidência que os sentimentos envolvidos nos relacionamentos correm em mão-dupla. Há uma parte na qual projetamos sobre o outro e uma parte que é projetada do outro sobre nós.

Freud percebeu que nós reagimos e nos relacionamos com uma pessoa não somente com base em como experimentamos a pessoa conscientemente, mas, também, com base na nossa experiência inconsciente tendo como modelo nossos relacionamentos do passado. 

Trazemos um relatório de coisas positivas e negativas das relações afetivas que vivenciamos desde que nascemos até a idade em que estamos. Estas informações ficam no nosso inconsciente e esse relatório afeta nossas escolhas no presente.

Esse processo pode influenciar, em níveis variados, a nossa escolha de amigos, namorados(as) e maridos/esposas.

Você já deve ter se perguntando por que um rapaz, no meio da balada, com várias opções de escolha, escolhe um mesmo padrão de sujeito, com até características físicas semelhantes aos que ele já escolheu em outras vezes? Gosto pessoal? Freud nos diz que é muito mais que isto.

Várias vezes no consultório eu já perguntei: 

“Você não acha que você está escolhendo com um mesmo padrão? Não são os mesmos tipos de aparência, cor de cabelos entre outras características? Você vê semelhanças entre seus exs e seu atual?

E quão espantados/espantadas ficam os pacientes ao perceberem que seguem um padrão muitas vezes inconsciente de escolha. Deste modo, podemos dizer que o “dedo podre” existe e tem origem lá na nossa infância e cresce sendo adubado pelos tipos de interações interpessoais que construímos na nossa vida.

Então, respondendo o segundo questionamento da nossa amiga que acha que o problema está nela, sim, ele está nela.

Isto não invalida a responsabilidade do outro com os afetos dela. Se um cara resolve brincar com os sentimentos dela, isto mostra uma perversidade afetiva nele. Porém saber que boa parte do problema está com ela lhe torna poderosa o suficiente para poder resolve-lo. Além de empoderar ela para que seja livre para não escolher um sejeito assim novamente.

Então como melhorar um “dedo podre”? Podemos curá-lo?      

A forma de arrumar isto seria fazendo terapia, procurando nos entender. Também passa por fortalecer nossa autoestima – nosso amor próprio. De igual modo, é olhar para nosso passado e perceber como ele tem influenciado nossas relações presentes.

Mas a esta altura você deve estar dizendo: “Doutor,  e o que tem haver tudo isso com a quarentena/pandemia?”

Bom, até aqui vimos que tanto Lewis quanto Freud nos mostraram que o amor romântico é baseado na troca de afetos. O isolamento social tem nos mantido distantes dos nossos amores ou dos locais que comumente procurávamos um relacionamentos.

Embora o amor possa acontecer em qualquer lugar, da fila do supermercado a uma voltinha no parque, neste momento muitos têm buscado parceiros em apps de relacionamento. 

Estes apps podem ser comparados a um açougue no qual você chega, escolhe a melhor carne e pede pra embalar para comer depois em casa. Você pode dar sorte de comprar uma boa carne só pela aparência. Mas também você corre o risco de ser enganado pelo açougueiro, pagar por uma carne de primeira e ao ir quando for degustar a carne perceber que é uma carne de segunda, dura e ruim para se mastigar.

Tudo bem que este é um risco que temos em relacionamentos que se iniciam no mundo real. Mas a chance de ser iludido neste tipo de relação virtual é maior. 

Lembrando da teoria de Freud, na nossa transferência, projetamos no outro desejos e necessidades que são nossas, que partem de nossos relatórios inconscientes. Numa relação sempre há o risco de ser decepcionado, de termos o coração partido, tal como lemos no trecho de “Os Quatro Amores de C.S. Lewis”: 

“Ame alguma coisa e seu coração certamente ficará apertado e possivelmente partido.”

C.S Lewis – Os Quatro Amores

Quando avaliamos a possibilidade de decepção em relações que permanecem no virtual, percebemos que a todo momento o investimento libidinal é feito no território da projeção. E isto deixa os indivíduos nela envolvidos mais vulneráveis que o normal.

Então podemos dizer que é pior ter relações advindas de aplicativos de relacionamento? Não, pelo contrário, seriamos muito imprudentes ao afirmar isto. 

Faz muito pouco tempo que este tipo de encontro afetivo começou. Como vimos, nosso conteúdo inconsciente advém de relações reais e não virtuais. Talvez precisemos realinhar nosso conhecimento e nos preparar melhor para perceber a possíveis enrascadas afetivas em que estamos nos envolvendo no mundo virtual.

Contudo uma coisa é certa, em algum momento essa relação tem que vir para o mundo real. Ela tem que se materializar em forma de beijo, toque, cheiro e contato sexual íntimo.

Vamos finalizar deixando dois questionamentos para refletirmos sobre a busca de parceiros afetivos:

1 – Será que todos temos a obrigação de estar com alguém? De onde vem essa regra que a todo custo você tem que se relacionar ou mesmo se manter em relações abusivas só para não ficar sozinho?
2 – Nossos mapas de vida são capazes de reconhecer e atuar de forma clara para nos impedir de entrar em um relacionamento furada – será que eles não favorecem nosso “dedo podre”?

Sobre o primeiro ponto, a necessidade de estar com alguém e a solidão, vou deixar aqui uma frase de C.S. Lewis:

“Se tudo o que entendemos por amor é a ânsia de sermos amados, nossa condição é deplorável.”

C.S. Lewis – Os Quatro Amores

Essa necessidade que alguns possuem de procurar um relacionamento a qualquer custo não é saudável. Seja por carência afetiva, seja por ser fruto de uma criação machista ou até mesmo uma baixa autoestima; vários são os motivos podem levar um indivíduo a buscar inconsequentemente um relacionamento. “Antes só do que mal acompanhado” é um excelente ditado da sabedoria popular.

Sobre o segundo ponto, temos que a tecnologia nos deu esta possibilidade, mas ainda estamos engatinhando na capacidade de lidar com ela de forma madura. Ainda vamos percorrer um longo caminho até conseguirmos atualizar nossos mapas de vida para sermos mais hábeis em escapar de parceiros errados nestes apps.

Contudo, nada poderá melhorar se você não cuidar de você. Por isso eu te convido a ter uma escolha inteligente. Antes de emendar no seu próximo relacionamento, inicie um relacionamento íntimo com você. Desenvolva amor próprio e se for preciso procure ajuda terapêutica. Não cabe, em pleno século XXI, preconceito com os cuidados com sua saúde mental. 

Vale a pena acreditar no amor mesmo em época de pandemia?

Vale! Se você começar primeiro se amando, já que a chance de viver um amor saudável com alguém será muito grande.